Comecei a fazer teatro, ainda adolescente, num grupo de jovens que havia na igreja, já contei essa história, mas vou repeti-la. Eu nunca havia feito nada, mas na primeira vez em que entrei em cena, pareceu-me fácil demais atuar, parecia que eu tinha feito aquilo à vida toda. Hoje vejo três razões no mínimo para que isso pudesse ter acontecido. A primeira se confirmou nos anos seguintes, quando, com apenas 16 anos, assumi a liderança daquele mesmo grupo, fui me profissionalizar e, mais tarde, comecei a faculdade de artes cênicas. De algum modo, parecia que eu tinha de fato nascido para fazer aquilo. A segunda razão, sem sombra de dúvida, era a minha arrogância de adolescente, que considerava possível fazer qualquer coisa que eu quisesse, sem medir as dificuldades, com as reais condições apresentadas pelas circunstâncias. A terceira, todavia, de ordem mais geral, é que o teatro que se fazia ali não era realmente um "teatro difícil".
A gente, ao menos eu, nem sabia muito ao certo o que era teatro, não havia muitas referências em nosso meio, mas aquilo que sabíamos fazer era suficiente para o nosso público. Não quero dizer com isso que não fizéssemos coisas boas. Fazíamos, sobretudo para aquele contexto e momento, no qual "teatro dentro da igreja", era uma coisa “muito nova”.
A questão é que passados alguns anos, é difícil encontrar uma igreja que não tenha algum tipo de “ministério” artístico, de dança, de esquetes, de evangelismo com teatro ou coisa assim. Basta colocar “teatro evangélico” no Google, para encontrar mais de dezessete mil entradas. Espanta entretanto saber que a despeito do crescente interesse pelo tema, e por todo o tempo transcorrido desde minhas primeiras experiências com o teatro, não fazemos hoje um teatro melhor do que fazíamos há vinte anos. Pelo contrário, a impressão que temos é a de que o teatro continue a ser uma coisa muito fácil, muito “natural”, que pode ser feita por qualquer pessoa. Basta não estar “ocupada” com outro ministério naquele período ou horário. Qual a razão para isso?
Em linhas gerais, parece que há um contingente bastante expressivo de “pessoas fazendo teatro” em nossas igrejas que não quer - ou não pode - gastar a necessária energia com “a trabalheira que dá” fazer teatro de um modo mais sério e maduro. É muito comum que nossos trabalhos sejam conduzidos de forma extremamente improvisada e que o compromisso dos integrantes de uma peça de Natal, por exemplo, com o "ministério de teatro", não vá além daquele trabalho episódico. Nesse caso, não há crescimento, basicamente, porque de um modo geral não há continuidade nos processos.
Não são poucas as pessoas que começaram a trabalhar comigo na igreja e depois desistiram de fazer teatro. Se essas pessoas identificaram em outros ministérios a oportunidade de crescer e servir a Deus, eu não considero sua desistência como uma perda. Foi, no máximo, uma descoberta. Mas uma coisa eu espero, que ninguém fique por achar que fazer teatro seja a coisa mais fácil, que exige menos compromisso, que gasta menos tempo ou que dá pra fazer de qualquer jeito.
Ao longo dos anos e movidos, muitas vezes, por um desejo sincero de ser inclusivo, de possibilitar que qualquer pessoa (bem intencionada) pudesse ter a "oportunidade" de participar do "teatro da igreja", acabou-se por forjar como modelo de referência um tipo de teatro que pudesse ser realizado por qualquer pessoa, que não envolvesse muito tempo de ensaio e cujo resultado final não respeitasse nenhum critério mínimo de qualidade, bastava apenas ser "feito pra Jesus". O trabalho do teatro acaba por ser realizado sem nenhuma referência de história, linguagem ou teoria das artes cênicas. É claro que esse tipo de atividade tem seu lugar, como dinâmica social, terapia de grupo, encontro de amigos, estratégias de evangelização, mas como prática estética, esse teatro se torna superficial e limitado tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo.
A partir daí, qualquer grupo que ensaie um pouco mais e que consiga fazer com que os atores falem mais alto, com um punhado de figurinos mais ou menos bem confeccionados (o que nem sempre quer dizer que sejam realmente bons figurinos ), alguma cenografia e aparência mais "profissional" acaba por se tornar modelo e referência para novos ministérios. O que era para ser a regra - ou seja, o mínimo requerido - acaba por se tornar exemplo de “excelência” e padrão de qualidade?
E não pára por aí, o teatro se tornou fácil inclusive de se ensinar – quase todo grupo teatral evangélico ministra oficinas a outros grupos ou igrejas (mesmo que nenhum integrante do grupo tenha qualquer formação específica).
Vem à minha memória agora o “Som do Céu”. Para quem não conhece, trata-se de um evento de música cristã de altíssimo nível. que acontece em Belo Horizonte e é organizado pela MPC. Minha experiência durante o evento foi a de que parecia que o Céu havia realmente se aberto e que naquele momento não fazia mais sentido o adjetivo "evangélica" para designar aquela música. Aquele lugar não tocava música evangélica, tocava apenas música. O que circulava por aquelas caixas de som poderia tocar em qualquer lugar do planeta, em qualquer sala de concerto e o público especialista ou amador, poderia divergir do conteúdo teológico das canções, mas não ousaria subestimar sua qualidade técnica ou o conteúdo poético. Infelizmente, por maiores que sejam os avanços que o teatro tenha empreendido, por mais que possamos destacar exemplos isolados de êxito de um grupo ou outro, de um ministério ou outro, em linhas gerais, "no grosso", ainda fazemos essencialmente "teatro de igreja" e não teatro na igreja.
Fico pensando que talvez precisássemos de um Som do Céu do teatro. Porque essa transformação não terá efeito se acontecer apenas aqui ou ali, numa igreja ou noutra, num grupo ou noutro de teatro. ela só será eficaz se acontecer em conjunto, de modo partilhado, e se conseguir alcançar as "igrejas de um modo geral".
Mas nossos encontros de teatro não estimulam o senso crítico, não “incitam” o povo a pensar sobre o teatro, da forma como o simples dedilhar na viola de um João Alexandre nos faz pensar sobre a música, sobre a arte e sobre a vida inteira.
Nossas oficinas de teatro e dança se assemelham algumas vezes a shows de variedades, para os quais se descola uma audiência por vezes imatura, ansiosa apenas por aprender um novo truque que possa ser repetido na sua própria igreja (dois ou três movimentos coreográficos novos, uma nova forma de fazer cicatriz com maquiagem, um exercício novo de relaxamento ou de impostação de voz). No lugar da reflexão, estimulamos a imitação de formas e depois queremos saber a razão porque fazemos um teatro que é sempre tão igual por onde quer que se vá e de um modo geral tão pouco atrativo em termos estéticos.
O I Encontro Soul de Arte e Cultura deseja humildemente ser uma dessas ocasiões para a conversa, as trocas e a reflexão. Sabemos que ninguém fará nada sozinho. O desafio está lançado, a igreja precisa de boas referências. Alguém se habilita?
I Encontro Soul de Arte e Cultura,
Guido Conrado é Mestre e Doutorando em Filosofia da Arte e Estética pela PUC-Rio, é Teórico em Teatro, formado pela Uni-Rio, tem uma longa vivência de trabalhos com teatro em igrejas e é autor do livro Cinco Pães e Dois Peixes - Dons e Talentos no Ministério Teatral das Igrejas, lançado pela Editora Vida em 2005. Coordena o Espaço Cultural Soul e a Cia de Artes Cênicas e Visuais da Soul.
Será muito bem-vinda Caren Caroline. Inscreva-se no link e até lá, https://espacoculturalsoul.wixsite.com/soulcultural/inscreva-se
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