Se me perguntam: “- Quem pode fazer teatro?!”, a resposta é clara e está na ponta da língua: “- Todos, todas as pessoas podem fazer teatro!”. Essa resposta não deriva de um compartilhar, com determinados teóricos desta arte, da compreensão de que todo ser humano tenha algo de artístico, ou de que todos tenhamos certas disposições inatas para "o representar", e sim da aceitação do fato de que, uma vez que não haja nenhuma lei que proíba um sujeito, seja ele qual for, de representar (nem mesmo os piores atores), é certo então que todos têm o direito de fazê-lo.
Quando, no entanto, me recordo de uma passagem da obra “Além das Ilhas Flutuantes”, de Eugênio Barba, na qual o teatrólogo rememora suas primeiras impressões sobre teatro, relatando a experiência de certo ator, já de idade avançada, que havia sofrido dois ou três enfartes e que, não obstante a ter sido advertido pelos médicos, desde o primeiro infarto, de que deveria parar de atuar ou morreria do coração, continuou semana após semana com seu ofício. A conclusão de Barba, com a qual eu estou de acordo, é a de “que somente os doentes do coração deveriam ser atores”.
A pergunta com a qual iniciamos o presente texto - sobre quem pode fazer teatro - mostra-se diante da fala de Barba, completamente vazia e caberia, então, diante disso, uma nova colocação do problema, dando lugar a outra pergunta que por mais que parece muito parecida com a primeira, carrega, todavia, um conteúdo de fundo muito mais pertinente: “- Quem deveria fazer teatro?”.
A resposta de Barba parece-me bastante convincente. Não importa que todos possam, que todos até mesmo tenham a capacidade ou o direito de fazer teatro, um sujeito como aquele, que não consiga entender a vida sem a possibilidade do teatro, deve dedicar-se necessariamente a esse ofício. Aquele ator, que se via obrigado a ignorar os conselhos médicos por não ver sentido na vida sem sua arte, não tinha escolha, precisava levar seu trabalho até as últimas conseqüências.
O sujeito que faz teatro porque é mais uma “estratégia” de evangelismo, ou porque o pessoal do teatro é “super legal”, ou seja lá porque outro motivo for, no meu modo de ver, está livre para procurar outra coisa para fazer. E, em alguns casos, deveria mesmo fazê-lo. Alguns, escandalizados, devem estar pensando: “- O que esse louco está dizendo? A paixão pelas almas, por exemplo, sozinha, já não seria motivo suficiente para que alguém se envolvesse com um ministério teatral ou com qualquer outro ministério?”Quem discordaria disso, mas meu ponto não é esse, então vejamos:
Alguém que adore cozinhar e que, além disso, tenha paixão pelas almas, pode muito bem montar em sua casa, uma vez por semana, por exemplo, um encontro com seus conhecidos para ensinar suas receitas, falar dos seus “truques” culinários e, em meio a tudo isso, falar do amor de Deus, do plano de salvação, etc., não pode? Ela pode juntar sua paixão pela culinária à paixão pelas almas e aí, pronto: temos também uma tremenda estratégia de evangelização.
Outra pessoa que não seja uma exímia cozinheira ou um exímio cozinheiro, mas que, contudo, goste de cozinhar, pode encontrar naquela primeira pessoa uma inspiração: procurar aprender, dedicar-se, fazer aulas, colecionar receitas, aparelhar-se para fazer também de sua “cozinha” uma ferramenta de evangelização. Agora, quem seria louco a ponto de discordar de mim se eu afirmasse que o sujeito que não sabe, sequer, fritar um ovo, deveria, muito provavelmente, dedicar-se a outro ministério?
A mim parece bastante óbvia a afirmação de que se a paixão pelas almas não é suficiente para fazer um sujeito atender às demandas de um fazer teatral, a saber: horas de ensaio; reflexão teórica, fundamental a qualquer trabalho consistente; tempo de aprendizado - ninguém nasce sabendo, isso é balela; investimento em livros, cursos e tudo o mais; esse mesmo indivíduo tem todo o direito até de fazer teatro, mas deveria, talvez, procurar algo que lhe motivasse de verdade.
Precisamos deixar de considerar o teatro como uma prática acessória qualquer, como mero instrumento, e passar a considerá-lo como um "saber" específico, que implica num chamado, numa disposição particular para um determinado trabalho. Uma peça teatral não é um panfleto, não é uma pregação formal, não é um hino, é algo de particular (isso não quer dizer melhor ou pior), e precisa ser compreendido e exercido em sua especificidade.
Para concluir, mais um exemplo de Eugênio Barba: quando o teatrólogo esteve no Brasil, entrevistado por um jornal de alunos de uma faculdade de teatro e solicitado a dar um conselho a jovens atores, disse: “a primeira coisa que você precisa saber é que ninguém além de você precisa que você faça teatro”. Essa resposta só parecerá de fato pessimista se entendida de modo equivocado. Na realidade esta frase é libertadora. Teatro não é nada de imprescindível, nada de muito necessário ou fundamental. Durante séculos nossas igrejas passaram sem teatro e, no entanto, ninguém deixou de evangelizar ou de edificar o corpo. Se o teatro acabar, virão outras formas, novas estratégias de evangelização, o reino não pára sem o teatro e, por isso mesmo, ninguém é obrigado a fazê-lo.
Mas, se não é imprescindível, por que continuamos fazendo?! A resposta a referida a pergunta é, talvez, a chave para todo o presente questionamento. O teatro é algo absolutamente dispensável, entretanto, insistimos em fazê-lo, por que? Porque precisamos. Porque há algo em nós que nos impulsiona à prática do teatro. Há infinitas possibilidades de expressão da comunicabilidade humana, desta necessidade que os homens têm de se comunicar uns com os outros, e, no entanto, nós escolhemos ou fomos escolhidos pelo teatro. Ele comunica, nos liga às pessoas, nos possibilita compartilhar das nossas experiências e da nossa fé. É um instrumento poderoso de evangelização, mas não é o único: há inúmeros outros instrumentos igualmente poderosos. No entanto, escolhemos este e não aqueles.
Assim, a pergunta acerca de quem pode fazer teatro, tanto quanto a de quem deve fazer teatro, é absolutamente sem efeito, pois o “quem” da pergunta supõe uma generalidade que se torna sem sentido diante do que está implicado na questão.
A pergunta precisa ser sempre pessoal, nunca generalizada; sempre um eu devo (?), em oposição a um quem deve (?); e a resposta não poderá ser efetivamente sincera se não vier precedida pela interrogação, igualmente pessoal: eu preciso? É vital que eu faça isso? Eu me dedicaria a esse trabalho? Esse é o meu chamado? Foi isso o que Deus fez arder no meu coração? O que importa não é saber quem tem o direito de fazer teatro, mas quem sente, no mais íntimo do seu ser, que tem o dever de fazê-lo. Não por uma obrigação, mas por pura e incontornável necessidade.
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